O presente texto visa contribuir com a discussão sobre a exigibilidade ou não dos tributos incidentes na importação, especificamente no recente caso de resgates de elefantas, sem destinação econômica, que foram trazidas para viver no Brasil. (veja em https://www.h2foz.com.br/fronteira/fim-da-viagem-elefantas-pochaeguillermina-chegam-ao-santuario-e...)
Destaca-se inicialmente que toda a tributação incidente sobre importações não tem caráter predominantemente arrecadatório, ao contrário, tem como função basilar e regular a atividade econômica, além de proteger a economia nacional da concorrência predatória do mercado externo, em outros termos, a tributação sobre a importação tem função regulatória, não tendo objetivos fiscais, consistindo em importante instrumento para regulação e proteção da indústria nacional.
Essa situação é verificável quando se constata que o Imposto de Importação não se sujeita ao princípio da anterioridade, podendo ser alterado no mesmo exercício financeiro pelo Poder Executivo, isto é, caso seja necessário, em função da regulação da atividade econômica, as alíquotas podem ser estabelecidas pelo Poder Executivo, de acordo com a sua discricionariedade à vista do interesse público, tendo em vista a natureza extrafiscal do Imposto sobre Importação, e obedecendo os limites e condições em lei.
Importante salientar, outrossim, a natureza extrafiscal de referidas tributações, isso significa dizer que, por meio de expedientes tributários, o Estado interfere na conduta das pessoas, incentivando ou inibindo comportamentos, à vista do interesse público [1]. O enfoque, repisa-se é privilegiar a indústria nacional, tornando-a mais competitiva, utilizando-se de mecanismos para tornar os produtos estrangeiros mais caros.
A natureza extrafiscal da tributação incidente na importação pode ser constada no Decreto-Lei 37/66, que em seu artigo 17 estabelece o chamado “princípio da similaridade”, que determina que no caso de ausência de similar nacional, deve haver isenção, porquanto não há o que proteger.
Qual a consequência prática, na análise do caso da importação das elefantas ao Santuário de Elefantes Brasil, da diferenciação entre a tributação incidente na importação dos demais tributos existentes em nosso sistema tributário?
A resposta deveras parece complexa, mas ao se analisar a função precípua dos tributos incidentes na importação e o objetivo do resgate das elefantas, notadamente a ausência de valor de mercado, ausência de exploração econômica através de visitações por exemplo (de fato o santuário é restrito a visitação, sendo permitido somente visitas técnicas), e principalmente a ausência de uma "indústria" nacional de santuários de elefantes, nota-se que por nenhum prisma a incidência de qualquer tributo em toda essa questão faz sentido, nem do ponto de vista jurídico e muito menos do ponto de vista humanitário, ou em mais precisos termos, considerando a função social e o escopo principal de toda tributação incidente sobre as importações, qual seja de regular a atividade econômica, não há, sob nenhum aspecto que se olhe, a possibilidade de ser exigir tributos destinados a regular a atividade econômica considerando a importação de uma elefanta que será encaminhada a um santuário sem qualquer tipo de exploração econômica, afinal, além de não haver concorrentes nacionais (considerando o aspecto estritamente legal), não há indústria nacional de santuários para proteção de elefantes no Brasil, o que poderia dar ensejo a uma eventual taxação protetiva, e, ainda que assim houvesse, a importação das elefantas não terá fim econômico, logo, não traria qualquer risco a nenhum empresa brasileira.
Na mesma linha, não há que se falar em diminuição da arrecadação, pois como demonstrado acima, os tributos incidentes sobre as atividades de importação têm caráter regulatório e extrafiscal e não arrecadatório (respondendo apenas por 5% das arrecadações), ou seja, os valores arrecadados nas importações não são destinados, ao menos em tese, para o sustento do Estado.
Em um prisma não meramente técnico constata-se ainda que exigir tributos de uma entidade sem fins lucrativos, que depende exclusivamente de doações para poder exercer suas atividades, dos quais nenhum provém do Poder Público poderá trazer prejuízos incalculáveis a qualidade de vida das elefantas, pois deixarão não somente de viver em um verdadeiro paraíso [1] na sua fase final de vida, mas também terão que ser deslocados, mais uma vez, para um local provavelmente não oferecerá a mesma qualidade de vida que tem hoje, o que afronta diretamente o disposto no art. 225 5, § 1ºº, VII, da Carta Magna a.
Nesse sentido é de grande relevância mencionar duas recentes decisões, que destacam exatamente o caráter humanitário dos resgates realizados.
A primeira de lavra do Magistrado Valter Antoniassi Maccarone da 4ª Vara Federal de Campinas , nos autos nº 5013639-32.2019.4.03.6105, em trechos que destacamos:
- (...) Ocorre que no presente feito, além da efetiva comprovação dos requisitos necessário à imunidade/isenção, deve-se ter em mente que não estamos a tratar de uma simples “mercadoria/bem” para efeito de incidência tributária.
- Trata-se de um ser vivo e senciente, que não foi adquirido pela entidade Autora, tendo-lhe sido doado para mera preservação de ordem ambiental, a fim de garantir melhor qualidade de vida ao animal que viveu anos e anos sob maus tratos.
- Pode-se dizer que no direito brasileiro, os animais são considerados coisas da espécie dos bens móveis, conforme constante do artigo 82 do Código Civil [2]. No entanto, tramita no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 27/2018, visando vetar o tratamento de animais não humanos como coisa, bem como o Projeto de Lei nº 351/2015, visando respeito ao meio ambiente e incluindo a proteção e defesa dos animais, de modo a tratá-los de forma diferenciada, abolindo a noção de coisa, existindo, ainda, o Projeto de Lei 631/2015, cujo objetivo é a criação de um Estatuto dos Animais e estabelecendo o direito à proteção a vida e ao bem-estar e vedação de práticas e atividades que se configurem como cruéis ou danosas à integridade física e mental, tipificando-as como maus tratos e impondo penalidades.
- Destarte, cada vez mais firme, tanto no Brasil quanto fora, o entendimento de que os animais merecem uma proteção especial em relação às outras espécies de bens, uma vez que a ciência os reconhece como seres vivos sensíveis, os quais devem gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, devendo ser vedado o seu tratamento como coisa/mercadoria.
- Restou incontroverso nos autos que não há qualquer intenção comercial com relação à “operação” (importação elefanta Ramba), visando exclusivamente o bem estar do animal, sem qualquer objetivo de exploração comercial do mesmo, estando inclusive vetada a visitação ao Santuário do Elefantes. Restou comprovado, também, que a Autora trabalha para manter sua estrutura, sem buscar qualquer tipo de doação ou incentivo do Poder público, se sustentando através de doações e cumprindo a legislação pertinente.
- (...) Destarte, por qualquer ângulo que se analise a situação, quer pelo direito à imunidade/isenção destinada a entidades com escopo educacional e sem fins lucrativos, quer pelo fato de não se tratar de uma simples mercadoria/coisa, a cobrança dos impostos/tributos referidos no presente feito, afronta o disposto no artigo 225 5, inciso VI da Constituição Federal l que determina que cabe ao poder público proteger a fauna e a flora, vedando práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.(destacamos).
Na mesma diapasão o Juiz da 1ª Vara Civil de Chapada do Guimarães, Dr. Leonísio Salles de Abreu Júnior, que de maneira exemplar asseverou na questão do ICMS importação (autos nº 1001993-45.2019.8.11.0024)
- (...) Os incisos IX a XI, do art. 3º, do RICMS/MT, que contemplam as hipóteses de incidência dos fatos geradores do tributo parece não contemplam a referida situação, quando dispõem o seguinte:
- “Art. 3º Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento: (...) IX – do desembaraço aduaneiro das mercadorias ou bens importados do exterior; (cf. inciso IX do caput do art. 3º da Lei nº 7.098/98, alterado pela Lei nº 7.611/2001) X – do recebimento, pelo destinatário, de serviço prestado no exterior; XI – da aquisição em licitação pública de mercadorias ou bens importados do exterior apreendidos ou abandonados”]
- Partindo-se das premissas normativas, é importante salientar que, a expressão ‘mercadoria’, na acepção jurídica do termo, entende-se como sendo coisa que constituiu objeto de uma venda, ou seja, aquilo que se seja produto de mercancia. Nesse sentido, conceitua a doutrina, de maneira enfática: “A mercadoria é bem ou coisa móvel. O que caracteriza uma coisa como mercadoria é a destinação, uma vez que é coisa móvel com aptidão ao comércio” (SABBAG, Eduardo de Moraes. Direito Tributário. 8ª ed. São Paulo: Premier Máxima, 2005. p. 344).
- Todavia, não há como considerar, nesta quadra de cognição perfunctória, que o referido animal enquadre como mercadoria para efeito de incidência tributária, pelo fato de não ter sido adquirido pela entidade requerente, tratando-se de doação levada a feito por razões de ordem ambiental, sobretudo de maneira a garantir qualidade de vida ao animal. Aliás, sua chegada ao Brasil está ao largo de qualquer intenção comercial, tanto que consta da finalidade, para fins cadastrais, como sendo ‘manutenção em mantenedouro de fauna’ (fls. 42/43).
- Ademais, conforme entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula nº 323, ‘é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos’.
- Assim, os elementos de cognição apresentados até o momento indicam não ser a hipótese de incidência do fato gerador do ICMS, qualificando-se como provável o direito alegado na exordial. Além de permitirem concluir que a retenção do bem acarretaria meio coercitivo de cobrança de tributo.
- Afora a questão de natureza tributária, não se pode olvidar a que a cobrança do imposto, com possível retenção aduaneira, implicaria demasiado sofrimento a Ramba, potencializado pelo imenso desgaste físico e emocional ocasionados pelo transporte aéreo. Assoma-se a isso, a impossibilidade estrutural de permanência do animal já informada de forma veemente e com certa preocupação pela administração do aeroporto de Viracopos, local em que desembarcará a aliá, a seu novo lar.
- Sobreleva-se também que o deferimento da medida liminar, de modo a impedir o condicionamento do recebimento do animal ao pagamento do imposto, visa garantir a efetividade dos direitos humanos, sobretudo a sua dignidade. Convém anotar que, segundo a doutrina constitucional contemporânea, os direitos humanos assumem agora uma quarta dimensão, de abordagem pós-humanista, superando-se o que se denominou como paradigma antropocêntrico. Nessa visão, os animais passam da qualidade de meros bens semoventes a serem sujeitos de direito, enquanto portadores de uma dignidade global, que também os inclui.
- Afinal, em termos práticos, a elefanta Ramba não fora adquirida pela entidade requerente, tampouco lhe pertence em termos patrimoniais, para que seja considerada como mercadoria ou bem adquirido onerosamente para fins de importação. Pelo contrário. Sua posição, longe de ser de mercadoria (como era na vida de exploração que seus antigos donos lhe submetia), é agora a de hóspede, que procura para si um novo destino à margem daquilo que a maldade humana já lhe causou.
- Anota-se ao final, que a retenção do animal para fins de ordem tributária no caso em questão implicaria manifesta ofensa ao disposto no art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, que veda quaisquer práticas que submetam os animais a crueldade. Donde se avulta o risco de dano irreparável, a autorizar o deferimento da tutela liminar.(...)
O imbróglio envolvendo o direitos dos animais e a tributação não é novo em outros países, importantes decisões já foram proferidas em casos como o da chimpanzé Cecília.
No Brasil esse assunto é ainda incipiente e altamente prejudicado pela voracidade arrecadatória do Estado, que muitas vezes prefere desconsiderar o bem estar dos animais do que "abrir mão" de exigir tributos, contudo, com base nas decisões citadas acima, começa-se a notar uma mudança, ainda que pequena, no entendimento do judiciário, o que poderá, quem sabe um dia, sedimentar o caminho para uma justiça tributária efetiva.
[1] Matéria completa sobre os benefícios propiciados aos elefantes no santuário pode ser visualizada no https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/elefantes-em-cativeiro-na-argentina-esperam-transferencia-para-mato-grosso/#page6
[1] COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário: Constituição e Código Tributário Nacional. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 256